Pequenos Sacrifícios: Ann Rule, 1987, Crimes Reais - 004
CAPÍTULO 1 (cont. part. 04)
Shelby Day virou-se para seguir os passos do Dr. Mackey em direcção ao interior da sala de emergências.
"Não" - disse a mulher loura. "Cher... Cheri!"
Shelby parou, confusa. "O quê?".
A mulher apontou em direcção ao chão do banco do passageiro, no lado da frente. "A Cheryl está no chão. Não se mexe".
Shelby espreitou para o interior do carro sobre sombras. Havia outra criança! Uma camisola escura tinha sido colocada à volta de uma menina que estava caída com a face na carpete do carro. A enfermeira teve de sentar a menina primeiro, para poder agarrá-la devidamente. Então, num só movimento fluído, tinha-a libertado do carro e corria com ela em direcção à sala de emergências. A criança estava pesada como pedra. Quando falhou em sentir sequer um fraco e independente esforço muscular vindo do fardo que carregava, Shelby temeu que a criança estava morta. Ainda assim, correu. Sentia um palpitar de coração a bater freneticamente, mas era o seu.
Deitou o seu fardo gentilmente numa cama, nas traseiras do lado esquerdo da sala de trauma. Podia ver médicos e enfermeiras a correr freneticamente para ajudar as duas outras crianças. Escutou o sistema autofalante do hospital a "cuspir" o código 4 repetidamente. As emergências já estavam a encher-se de pessoal médico, todos a trabalhar eficientemente e, superficialmente, com aparente calma.
Jan Goldberg Temple, uma enfermeira registada designada à unidade de cuidados intensivos, apressou-se para a ala das emergências. Juntou-se a Shelby à cabeceira da terceira criança. Carleen Elbridge, técnica de raio-X, Ruth Freeman, enfermeira supervisora de serviço e Sue Sogn, enfermeira registada do terceiro piso - todas estavam ali. Dois terapistas respiratórios - Bob Gulley e Dementria "DJ" Forester - apareceram a correr. Joe "Tony" Curtis, rapaz da manutenção, estava a trabalhar com a equipa médica, a correr para obter unidades de sangue, abrindo portas prontamente, a fazer tudo o que fosse necessário.
Foi pura sorte tantos médicos se encontrarem disponíveis para ajudar tão tarde num dia da semana.
O Dr. David Scott Miller é pediatra, um homem com traços bem definidos, com bigode e óculos, gentil, destinado a ser um especialista infantil. Normalmente, as suas rondas pelo hospital terminariam horas antes mas nesta noite, um atraso atrás de outro atraso manteve-o no hospital. Já estava a caminhar no parque de estacionamento em direcção à sua viatura quando escutou a comoção e decifrou as eletrificantes frases nas palavras pronunciadas pelo ar noturno: Ouviu as palavras "crianças" e "alvejadas".
Virou-se e correu para as emergências, todo o seu cansaço esquecido.
Judite Patterson comunicou-se com o Dr. George Foster, um cirurgião pediátrico da equipa do hospital Sagrado Coração de St Eugénio e também ele correu para o McKenzie-Willamette.
Quatro pessoas haviam saído do vermelho Nissan Pulsar. Shelby havia notado como a jovem mulher loura - a mãe? - tinha permanecido tão imóvel ao lado do carro. Choque. Um "leigo" nunca está preparado para o súbito trauma com ferimento sangrento e a rapidez com que tudo acontece. Shelby virou-se e percebeu que a jovem mulher tinha-a seguido até a sala de trauma. Muito pálida mas sem lágrimas, permaneceu calada a olhar de cama para cama.
"Não devia estar aqui" - pensou. Nenhuma mãe consegue lidar com uma visão destas. Provavelmente todos os seus três filhos estavam a morrer. Shelby viu Judite de pé, do lado de fora da porta da sala de tratamentos e chamou-a calmamente. "Judite, tira-a daqui!".
A mulher loura seguiu obedientemente Judite. "Está bem. Fico aqui sentada na maca". Esperou ali, empoleirada na maca de rodas em frente à secretária de Judite.
Shelby Day esqueceu-se da mulher loura e focou-se em salvar a criança que encontrara caída no soalho do banco da frente. Aspirou a garganta da menina para remover coágulos de sangue the bloqueavam a passagem de ar. Mas os coágulos eram espessos como fígado. Sangue hemorrágico presente na garganta por tanto tempo que tinha coagulado. Estranho. Era raro para a equipa de emergências encontrar sangue coagulado. Geralmente os pacientes são transportados para o hospital quando ainda estão a sangrar. Cada vez que removia um coágulo de sangue, havia outro por detrás.
Enquanto Shelby esforçava-se com a sua tarefa infrutífera, Jan Temple removeu as roupas da criança, deixando-a nua, à excepção de uns calções verdes que usava no lugar das cuecas. Jan conectou-lhe o monitor de batimentos cardíacos, aplicando as extremidades no peito da criança.
A máquina lê impulsos elétricos presentes no corpo e reage, mostrando batimentos em forma de uma linha que sobe subitamente. Não estava a revelar isso. Apenas uma linha contínua. Era o mesmo que ter ligado a máquina à cadeira ou à cama.
Por um momento o dr. Mackey largou a beira das duas crianças que respiravam, ainda que ténuamente. Tentou entubar a última criança a ser descoberta, mas só encontrou sangue. Intrigado, levantou gentilmente a criança e encontrou dois buracos de bala nas costas da menina: um por cima do ombro direito, outro mesmo abaixo do ombro esquerdo. Olhou para o monitor de batimentos cardíacos e abanou negativamente a cabeça.
"Não podemos fazer nada por esta criança" - constatou.
Shelby sentia-se enfurecida. Incapaz de aceitar a morte da criança, cujo cabelo cor de caramelo espalhava-se tão brilhante e vivo sobre o lençol branco.
"Como assim, não vamos fazer nada por ela?" - exigindo uma reacção do dr. MacKey.
"Não há nada que possamos fazer. Já estava morta quando a transportaste para dentro do hospital. Lamento".
Ela sabia que ele estava correcto. Colocou de lado o aspirador de fluídos e olhou para a menina, de pele amarela como cera e translúcida como uma gardénia esmagada. Tão jovem - não mais do que seis ou sete anos! Tinha usado calças de bombazine castanhas com um cinto Levi e uma t-shirt púrpura e branca já algo envelhecida. A camisola que primeiro a tinha escondido da vista dos socorristas era demasiado grande para uma criança. De um azul acinzentado, foi feita para ser usada como uniforme para os trabalhadores do serviço postal americano. Tinha um emblema dos correios na manga esquerda. Shelby dobrou tudo e pôs as vestimentas no cesto para roupas no fim da cama.
As outras duas crianças mal estavam vivas. O menino louro choramingava vagarosamente, em pânico pela sua incapacidade de levar ar para os pulmões. Jan Temple saiu do lado da criança morta para ajudar o menino vivo.
A outra menina não se mexia. Não emitia sons alguns. David Miller estava ferverosamente a tratar dela. Parecia ser apenas um ano mais velha que a criança morta. Tinha dois pequenos ferimentos de bala de baixo calibre no peito esquerdo. Uma bala tinha entrado perto do mamilo esquerdo, atravessou-lhe o corpo e saiu pela omoplata. A segunda bala entrou dois ou três centímetros ao lado da outra, causou uma entrada com um ferimento maior e ainda estava no seu corpo. Tinha uma terceira ferida de entrada e saída junto à base do seu polegar esquerdo.
Estava tão perto da morte como uma pessoa pode estar. Na realidade, encontrava-se no início do processo de morrer. Não registava pressão arterial e não respirava, para além de alguns agoniados suspiros por ar. Ao entrar nas emergências, as suas pupilas tinham reagido à luz. Mas agora Miller podia ver a vida a fugir dos seus olhos. Caramba! Não iam perder aquela também!
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